Ninguém jamais recebeu o
convite ao lado. Os quatro meses passados no ermo castelo Silling, no qual 48
pessoas se enclausuraram para praticar as mais devassas orgias, existiram
apenas na mente de Donatien-Alphonse-François de Sade. E fazem parte da obra
mais famosa do francês conhecido como Marquês de Sade, Os 120 Dias de Sodoma.
Esses e outros livros,
pornográficos e libertinos, tiveram papéis contraditórios na vida de seu autor.
Por um lado, o transformaram, muitos anos após sua morte, em um gênio precursor
de correntes filosóficas e autor de obras consideradas à frente de seu tempo.
Mas, por outro, são responsáveis pela confusão que se faz entre sua vida e sua
obra.
A VIDA
Não que Sade fosse santo. O
homem que deu origem à palavra “sadismo” e passou um terço de sua vida preso
teve, sim, suas experiências sexuais um tanto incomuns. E era um grande
mulherengo. Mas não fez diferente de outros nobres de sua época. “Libertinagem
é uma palavra típica do século 18 e ‘libertino’ é um tipo social da época”. “O
libertino era um aristocrata que desafiava os valores dos homens e de Deus”.
Sade tampouco fez o que
escreveu. Sua literatura deu abertura para uma série de mitos construídos sobre
si. Como o de que, por exemplo, teria passado seus últimos dias encarcerado
solitário, escrevendo com sangue e com as próprias fezes para substituir a pena
que havia sido tirada dele. Na verdade, ele passou o fim da sua vida – tão
obeso que os movimentos eram prejudicados – em um manicômio, mas ao lado da
mulher e de uma amante, e escrevendo muito.
Sade era, antes de tudo, um
nobre. Filho de um conde diplomata e militar, ele nasceu em junho de 1740 no
palácio de La Coste, em Paris. Seguiu a carreira militar e, aos 16 anos, lutou
na Guerra dos Sete Anos, na qual a França e a Áustria disputaram com a
Inglaterra e a Prússia territórios e destinos comerciais. Quando voltou do
conflito, foi obrigado pelo pai a casar-se com Renée-Pélagie de Montreuil.
Filha de uma família de nobreza recente e com influência na corte, Renée tinha
dois problemas, que se tornariam as perdições da vida de Sade: uma mãe muito poderosa
e uma irmã mais jovem e mais bonita.
O primeiro escândalo na vida
do marquês ocorreu cinco meses após o casamento. Em outubro de 1763, foi
acusado pela prostituta Jeanne Testard de obrigá-la a renegar Deus e a realizar
“atos de sacrilégio” com imagens cristãs enquanto mantinham relações sexuais.
Acabou preso, mas, graças à influência da sogra, ficou na cadeia menos de um
mês. A sogrona ainda o livrou da forca em 1772, quando Sade intoxicou uma
prostituta – em uma festinha, ofereceu à infeliz um bombom com um licor
afrodisíaco e ela quase morreu.
Sua esposa sabia de suas
traições, mas, mesmo assim, manteve-se a seu lado por 27 anos, além de dar-lhe
três filhos. Um deles, Donatien-Claude-Armande, queimou quase todos os
manuscritos e correspondências do pai após sua morte. Se Renée fechava os olhos
para as escapulidas do marido, o mesmo não fazia sua mãe. De protetora, a sogra
passou a perseguidora quando Sade revelou que mantinha um caso com a cunhada,
Anne-Prospère. O casal fugiu para a Itália. Ela conseguiu localizá-los e pediu
ao rei da Sardenha em pessoa, Carlos Emanuel III, que expedisse uma ordem de
prisão contra o marquês – embora sem acusação alguma. A sogra ainda se incumbiu
das despesas de seu cárcere forçado na fortaleza de Miolans, em Savóia, entre a
Itália e a França. Em abril de 1773, o marquês conseguiu fugir.
Em 1775, outra confusão. Uma
orgia envolvendo empregados do castelo, Sade e a própria mulher, Renée, veio à
tona. O processo foi aberto pelo pai de uma das criadas que participaram da festa
– além de enfrentar o marquês nos tribunais, ele deu dois tiros em Sade, que se
salvou graças à má pontaria do atirador.
Em janeiro de 1777, a sorte do
nobre mudou. A sogra conseguiu que o rei emitisse uma carta de prisão, chamada
lettre de cachet. Dessa vez, por 13 anos. E também sem um crime propriamente
dito.
A OBRA
Até então, Sade era apenas um
cara com uma vida amorosa apimentada. Na prisão, isso mudou. Lá – onde, ao
todo, passou quase um terço da sua vida, lendo muito –, produziu toda sua obra.
Em 1784, foi transferido para a Bastilha, onde escreveu contos e novelas (cerca
de 50) e produziu seu primeiro romance, Os 120 Dias de Sodoma ou a Escola da
Libertinagem, concluído em apenas 37 dias. Em 2 de julho de 1789, 12 dias antes
da tomada da Bastilha, Sade foi transferido para o Sanatório de Charenton sem
poder levar nada. Morreu sem saber que seus manuscritos foram achados por um
guarda e publicados – mesmo que apenas em 1935.
Se existe uma coisa que o
autor Sade não faz é poupar seus leitores. Inspirado nas “sociedades do amor”
formadas pelos aristocratas de sua época para satisfazer desejos sexuais, o
marquês escreveu a história de uma comitiva que realiza em um castelo as mais bizarras
experiências sexuais. Grande parte da obra é dedicada à pedofilia e à descrição
de práticas coprofílicas – com fezes humanas.
Em 1790, Sade foi anistiado
pela Revolução e deixou o manicômio. Foi quando Renée o abandonou. Dias
depois, porém, o francês conheceu a mulher que seria sua companheira pelo resto
de seus dias, Marie-Constance Renelle. E, com seus bens confiscados pela
Revolução, envolveu-se na política: virou comissário para a administração de
hospitais de um distrito de Paris. Três anos depois, voltou à prisão. A
acusação agora era a de se recusar a punir e a condenar os réus: o marquês era
malvisto pelos radicais revolucionários por sempre procurar o meio-termo e ser
contra a pena de morte. Em liberdade, publicou A Filosofia na Alcova. No livro,
conta a história de Eugénie, jovem que tem aulas de libertinagem em uma orgia
entremeada por discussões filosóficas. Nele, faz uma irônica denúncia aos
revolucionários. Acusado de “moderatismo”, escapou da guilhotina em julho de
1794.
Em março de 1801, com a França
sob a batuta de Napoleão, Sade foi levado ao manicômio de novo – e nunca mais o
deixou. Aos 74 anos, obeso, morreu em sua cela. Foi enterrado no cemitério de
Charenton. Sua cova não tinha nenhuma inscrição, apenas uma cruz.
O LEGADO
Apesar de produzir uma obra
extensa – da qual apenas um terço foi publicado –, Sade foi um escritor pouco
lido em sua época. “Ele sabia que o que escrevia não seria vendido na esquina
livremente. Sempre foi um autor clandestino”. Assim ele permaneceu durante todo
o século 19. Em 1834, uma edição do Dicionário Universal inaugura o termo
“sadismo”, com o significado de “aberração horrível do deboche; sistema
monstruoso e anti-social que revolta a natureza”. O nome só se torna famoso,
porém, quando usado pelo psiquiatra alemão Richard Freiherr von Krafft-Ebing,
num catálogo de psicopatias sexuais, em 1886.
Os livros de Sade chegaram a
ser julgados pelos tribunais franceses em 1950, sob a alegação de afronta à
moral e aos bons costumes. Aos poucos, artistas como Salvador Dalí e André
Masson começam a se inspirar nas imagens sadianas de crueldade para compor suas
obras. Para a filósofa e escritora Simone de Beauvoir, a filosofia radical de
liberdade de Sade precedia o existencialismo em mais de um século. Há quem o
veja, ainda, como um precursor do estudo do foco da sexualidade que permeia
toda a psicanálise de Sigmund Freud. Após mais de dois séculos de sua morte, o
marquês recebeu dos surrealistas o apelido de “divino”, entrando para o hall de
gênios da literatura e da filosofia.
“Ele coloca uma questão
fundamental: como lidar com nossas paixões mais cruéis para encontrar um ponto de
superação e de civilização”. Ainda hoje o pensamento do marquês é provocador.
“Amigo leitor, prepara teu
coração e teu espírito para o relato mais impuro já feito desde que o mundo
existe.”*
Você está convidado a
mergulhar num mundo em que tudo é liberado. Incesto, homossexualismo, orgias e
demais violações das normas da sociedade.
Local: Castelo Silling
Data: 30 de outubro de 1784
Durante 120 dias, 44 pessoas
se entregarão aos mais secretos – ou nem tanto – deleites de quatro libertinos.
Esqueça seus pudores, seus medos, seus questionamentos morais. Aqui não há
lugar para eles.
* FRASE DE SADE NA INTRODUÇÃO
DE SEU LIVRO OS 120 DIAS DE SODOMA
MITOS SÁDICOS
Uma
série de histórias foi contada sobre o nobre francês - mas poucas são
verdadeiras
Muitas histórias nebulosas
surgiram em torno de Sade. Com uma vida amorosa repleta de traições e
festinhas, várias prisões e uma literatura pornográfica, ele serviu freqüentemente
de bode expiatório para muitos crimes praticados por libertinos ricos e impunes
de sua época. O próprio marquês confirmou, em uma das cartas que escreveu da
prisão, em 1781, à esposa: “Sou um libertino, eu confesso; eu concebi tudo o
que se pode conceber nesse gênero, mas seguramente não fiz tudo o que concebi e
certamente nunca farei. Sou um libertino, mas certamente não sou nenhum
criminoso nem assassino”. Vários crimes foram atribuídos a Sade, mas nunca
provados. Eis alguns deles:
• Enviar um exemplar de seu
romance Juliette (que contava a vida de uma moça que participa de orgias em um
convento e relata cerca de 50 mil crimes) a Napoleão, que teria ateado fogo ao
livro.
• Ser encontrado em uma sala
com um homem morto colocado em um imenso pote de vidro com álcool. Ele teria
matado o sujeito e dissecado o corpo.
• Em 1834, a polícia teria
arrombado sua casa e o encontrado deitado no chão, bêbado, junto a seu criado,
ambos estendidos sobre poças de sangue e vinho.
• Ser preso em flagrante
quando tentava queimar uma mulher viva e nua em sua casa.
• Ter provocado, por
intermédio de seus livros cheios de violência e crueldade, assassinatos – como
o cometido por um suposto leitor, que teria matado uma jovem que cuidava do
marquês no sanatório.
CARTAS DE UM HOMEM SENSÍVEL
Correspondências revelam um sujeito angustiado e
irônico
Preso durante um
terço de toda sua vida, Sade se comunicava com o mundo por meio de suas cartas.
Seja para as amantes, para a sogra, para a esposa ou para o rei Luís XVI, ele
nunca deixou de escrevê-las. Nelas, o marquês se mostra um homem sensível, às
vezes apaixonado, às vezes ciumento. Em uma biografia recente, The Marquis de
Sade – A Life (“O Marquês de Sade – Uma vida”, inédita em português), o
americano Neil Schaeffer diz que “uma das melhores surpresas foi descobrir a
riqueza, o humor e a humanidade genuína de suas cartas da prisão”. Muitas vezes
seus relatos se mostram angustiados e revoltados, principalmente nas acusações
à sogra. Em 1779, escreve a Renée: “Então sua execrável mãe não tem ao menos
pena das minhas condições, e, embora esteja completamente consciente de tudo o
que enfrento, ela o julga necessário, apenas para instigar sua raiva e a de seus
conselheiros, apunhalando-me pelas costas novamente, doente como estou. Ah,
besta detestável!” O marquês tem um humor refinado e, a seu secretário,
escreve: “Na França não se fala impunemente a respeito de uma puta. Pode-se
falar mal do governo, do rei, da religião: tudo isso não é nada. Mas uma puta,
senhor Quiros, com os diabos! (...) Por causa dela intrepidamente encerram um
cavalheiro na prisão durante 12 ou 15 anos”.
POR: GUIA DO ESTUDANTE.
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